Na prateleira de coisas importantes
A primeira câmera fotográfica que eu tive contato em minha vida foi uma Kodak Instamatic 177XF - hoje eu sei o nome dela, a marca, o modelo, o funcionamento. Mas quando primeiro a conheci, ela era apenas 'a câmera', ou ‘a máquina fotográfica’.
Atualmente ela descansa em minha prateleira. Limpo e faço alguns disparos imaginários de tempos em tempos, para manter o mecanismo em dia. Usava um cartucho de filme 126 mm, geralmente com 24 poses como padrão.
Ela ainda funciona, mas não existem mais filmes para ela - quer dizer: claro que em tempos de conexão mundial ainda é possível encontrar algum, mas são difíceis e caros.
Há quem faça algumas modificações, corte alguns pedaços da câmera e emende outros, para adaptar para filmes 35 mm. Mas eu não. Para mim, a Instamatic que tenho aqui é um ser imaculado.
Era a câmera da minha mãe e eu me lembro bem do dia que ela ganhou de presente do meu pai. Foi em um Natal, pelos idos de 1980, não sei o ano correto.
Naquela época fotografar era um acontecimento. Filmes e revelação eram caros e pouco acessíveis, ainda mais com meus pais criando 4 filhos. E tudo ficava ainda mais difícil vivendo em uma cidade pequena do interior sem as “modernidades" das cidades maiores ou da capital.
Por conta disso a câmera só saia de sua caixa, cuidadosamente guardada na gaveta da escrivaninha - gaveta direita, fechada à chave - em momentos especiais. Na visita de um parente ou amigo que não se via há muito tempo, aniversários, festas de fim de ano, alguma viagem de férias ou visita à casa de meus avós. Quando saíamos em viagem sempre era feita a pergunta: “pegou a câmera?”.
Assim, um filme durava o ano todo, às vezes mais. Cada quadro era muito bem contado e cada disparo era precioso. Não se faziam duas fotos iguais.
Por isso era comum ter fotos de um grupo de pessoas em que alguém saia com o olho fechado. Fazia parte e uma das diversões das crianças, inclusive, era tentar sair na foto fazendo alguma careta. Tentativa que quase sempre terminava com um cascudo ou um puxão de orelhas. Geralmente os dois.
E quando o filme terminava e era enviado para revelação era preciso esperar vários dias, às vezes meses, para ver o resultado.
E eram esses dias de espera pela volta do filme que pareciam demorar mais. Mais do que todo o tempo entre a primeira e a última foto.
E quando toda essa eternidade passava e as fotos chegavam, todos nós sentávamos ao redor da mesa e minha mãe ou meu pai tirava as fotos de dentro de um envelope - amarelo com a marca da Kodak e o nome do laboratório ou estúdio - e íamos passando cada postal 10x15 em papel brilho, de mão em mão, relembrando o momento em que a foto foi feita, comentando cada uma delas, rindo e às vezes também chorando.
Aí vinha o ritual de colocar as fotos no álbum que era um “brinde” com o serviço de revelação e ampliação. Um pequeno caderno com páginas plásticas no tamanho certo para as fotos e uma capa em papel cartão com uma foto de paisagem. Essas paisagens de castelo, montanha com neve ou uma praia de águas azuis. Coisas que a gente nunca tinha visto pessoalmente na vida.
Onde eu cresci a paisagem era diferente. Árvores, campos, pinheiros e casas simples. Nada de castelos ou montanhas com neve.
O álbum precisava de um sequenciamento. Era um juntar as fotos do mesmo momento ora por ordem cronológica, ora pela questão visual, ora pelos personagens retratados.
Depois o álbum ia para uma caixa cuidadosamente colocada em uma prateleira interna do guarda-roupa dos meus pais, ao lado de uma caixa de madeira onde minha mãe guardava objetos de valor - na maioria sentimental - como um broche antigo, um anel, um pedaço de papel rabiscado com a caligrafia de minha bisavó, algum documento amarelado, uma antiga imagem de santo feita em chumbo e coisas do tipo.
Era lá que as fotografias ficavam: na prateleira das coisas importantes. E só saiam quando algum parente ou amigo chegava de visita e queria ver as fotos da última estadia na casa.
Assim era a fotografia. Um ritual importante de preservação, um relicário do tempo. O suporte físico da memória de nossas vidas testemunhadas por uma Kodak Instamatic.
Na minha cabeça de moleque a fotografia sempre foi essa coisa notável. Algo que, de tão importante, só aparecia em momentos muito especiais e era guardado junto com coisas importantes.
E talvez essa sensação de importância seja o que me levou a fotografar. E, por conta dessa profissão, eu acabei rodando boa parte do mundo, e vi vulcões, desertos, florestas, ruínas antigas e até castelos com montanhas cobertas de neve. E sigo fotografando.
Henry Milleo - 19/08 - Dia mundial da fotografia.
P.S.: Em minha casa as fotografias ainda são guardadas em uma caixa que eu deixo na prateleira de coisas importantes, na estante ao lado daquela Kodak Instamatic.
Henry Milleo
Fotógrafo
Editor de Fotografia
Criador do Podcast Arquivo Raw
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